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EDITORIAL

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Ricardo Guimarães
Ricardo Guimarães
Diretor da Ci

Afunilar o mercado na procura doméstica é bater no mesmo muro de 2008

É muito importante olhar para o mercado em ciclos longos. Não medir a temperatura nem no forno, nem no frigorífico… Em especial em dias como os de hoje, quando tudo parece incerto, ou certamente perdido.

Importa persistir num olhar de longo prazo, que nos dê uma vista em perspetiva, se possível procurando onde nos possamos basear para construir expectativas, onde encontrar experiências comparáveis.

E, na verdade, pode não ser assim tão complexo. Todos os que estão no mercado há alguns anos sabem bem como foi passar a crise de 2008. O mais marcante desse ciclo, mais do que a sua natureza inesperada, foi o fosso que abriu, sorvedor, sem fim, desembocando num deserto de perspetivas. Numa total desesperança.

A ausência total de expectativas tinha um fundamento estrutural: a dependência que o imobiliário tinha do mercado doméstico, ou seja, da retoma do poder de compra das famílias. Todos perceberam que, assentando-se numa procura viabilizada pelo endividamento, sem poupanças ou poder de compra real para “aceder à habitação”, e sendo o arrendamento uma miragem, o mercado tinha batido num muro.

O momento resumia-se a um “novo normal” que, no caso português, era “triple A”: “A”usência de capital; “A”usência de crédito e “A”usência de poder de compra!

Esta evidência implicou (a Troika ditou) a orientação da economia nacional para os mercados externos, sendo nesse quadro que foram lançados os programas que viabilizaram a retoma económica geral, o relançamento do investimento, a reabilitação urbana, o turismo, o alojamento local, o emprego... Não é novidade para ninguém… Uma pequena economia aberta só é viável quando se orienta para o exterior. Assim… voilà! Como que por uma varinha de condão, tudo se transformou. O mercado diversificou as fontes de procura, libertando-se do espartilho doméstico e encontrando capacidade de atração de investimento internacional. As cidades reabilitaram-se (após tantos anos a debater a reabilitação…), fazendo de Lisboa e Porto destinos imperdíveis para os turistas visitarem, os europeus viverem e as empresas se localizarem, num ciclo pelo menos tão vertiginoso como tinha sido a crise anterior.

O mercado residencial passou a ser disputado por diversos usos, crescentemente capazes de gerar receitas e de remunerar os seus proprietários, passando esses ativos do lado do “consumo” para o de “meio de produção”, permitindo o pagamento de rendas mais elevadas. Tudo isso, num contexto de muito menor endividamento, seja do lado dos promotores, seja dos compradores finais.

É essencial compreender esse enquadramento para perspetivar o futuro.

Ninguém sabe quando termina a “crise do covid-19”. Isso será determinante para qualquer futuro. Mas sabemos que o mercado fez uma trajetória assente num racional de rendimento, viabilizado por uma procura de índole internacional. E essa é a chama da esperança! Sabemos que os setores não vão recuperar de forma rápida, desde logo o turismo. Mas sabemos que (em normalidade), irão recuperar. Se os preços começarem a baixar, sou capaz apostar que mal haja sinais preliminares de fim de crise, começarão a subir. E podem mesmo subir muito rapidamente, com os operadores a antecipar as expectativas futuras. Como já disse e demonstro (não tenho aqui espaço) não houve bolha em 2008 e não havia bolha em 2019. Por isso o mercado retornará.

Qual o risco? A falta de memória. Se vencer uma retórica de que «agora sim, os preços e as rendas finalmente caíram», se afunilarmos o mercado na procura doméstica, batemos no mesmo muro de 2008…

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